Começo por agradecer-te por teres feito parte da minha vida...
Lembro-me quando era pequena.
Tinhas um mercedes core de vinho e tinha um telefone com ecrã. Achava aquilo o maximo! Nunca tinha visto tal coisa. Alto,bonito, o teu cabelo brilhava sempre e estava sempre penteado do mesmo jeito, meio comprido... muito charmoso. O sorriso morava na tua cara.
Deixavas-me fazer tudo... Brincava, pulava, cantava e tu achavas piada a tudo. Era a tua sobrinha preferida. Sentia-o. Eras um homem generoso. Eras o MEU tio.
... Passaram uns anos em que nao tivemos contacto. A vida é assim e nao podemos escolher sempre. Mas moravas no meu pensamento. Eras o tio pelo qual sempre tive mais admiraçao, bonito, alto, inteligente e carinhoso. Admirava-te como pai por ver o amor que sustentavas pelas tuas filhas.
De alguma forma nunca deixei de saber de ti, nem tu de mim... apenas nao nos viamos.
A ultima vez que me lembrava ter-te visto, tinha sido quando eu ainda tinha 8 anos...
O tempo voo. E muita coisa aconteceu.
Voltei a falar contigo por telefone aos meus 19 anos. De vez em quando eu ligava-te para saber de ti. E nunca me tinhas contado nada... Para eu nao me preocupar. Sabias que eu adorava a tua parura de homem forte. E contar-me, seria para ti rebaixar-te. Seria para ti, mudares aos meus olhos. Mas isso nao era verdade.... Ja nao era uma menina, ja era mulher para entender.
Ja tinhas sobrevivido a um cancro na garganta. Caiste, lutaste,ergueste-te. E para mim foi um orgulho, porque venceres a doença, so me provava o homem forte que eras.
Um dia, a minha mae, lavada em lagrimas, diz-me que estas quase a morrer. Em soluços, tenta-me explicar que tens um tumor na cabeça... Nao soube como reagir. Directamente lembrei-me de ti ha uns 15 anos atras, cheio de saude... e nao quis acreditar.
Nao era possivel para mim, que algo de tragico se abatesse sobre ti novamente. Eras para mim um ser intocavel, com essa tua aparencia forte de homem, como se nada de pudesse abanar.
A mae a dizer-me que nao era justo. Pois nao era o primeiro irmao que perdia. Nao sabia o que fazer nem o que dizer. Eu so queria que ela se calasse. Que se calasse como se o que ela me estava a dizer era uma mentira. E a primeira coisa que disse, confiante, foi que queria falar contigo. Nao conseguia acreditar.... Precisava de te ouvir.
Liguei para ti. Estavas praticamente afonico. Mas ficaste tao feliz por eu te ligar. Dizias-me para nao me preocupar que ja estavas a fazer o tratamento adequado e que irias ser operado para retirar um dos tumores que te comia a vida, dia apos dia.
Assim foi. Foste operado, e com sucesso retiraram-te dois tumores da cabeça. Era uma vitoria. Fiquei tao feliz quando nos ligaram a dar a noticia! Mais tarde falei contigo, que me disseste '' vês, o Tio disse para nao te preocupares''...
A vida continua... As coisas passam e vive-se com a sensaçao de vitoria.
Ate que um dia, as coisas desabam e parece que nunca o bem chega, sem trazer o mal por detrás.
Mais uma vez passo pelo mesmo com a noticia da minha mae a avisar-me de que estas muito doente, que um tumor alastrou e que nao poderas ser operado por ser impossivel retirar o tumor ....
A tristeza voltou a abater-se sobre nos, sobre mim. E aquela imagem tua, voltou... Aquela em que te via saudavel e jovial.
O tempo passou e ouve um dia a noticia de que poderias ser operado.
A mae e eu falamos muito e ela decidiu-me finalmente expor-me a situaçao da tua vida. A tua solidao e o praticamente, abandono dos teus filhos. Fiquei triste por saber que estavas so. A mae acrescentou dizendo que seria operado em Março.
Nao pensei duas vezes. Voltei para Portugal. Num sabado peguei no carro e fui ter contigo ao Porto, directamente para o IPO onde supostamente ja estarias....
Finalmente chegada la, disseram-me que ja estavas em casa. Entao liguei a tia, para que me desse a tua morada e fui ter contigo a S.Joao.
Tio, nao sei o que te dizer... fiquei em estado de choque quando te vi e as lagrimas brotaram dos meus olhos... Tinham passado 13 anos desde a ultima vez que te tinha visto. E quando te voltei a ver, nao te reconheci. Por cupla dessa doença que te apavorava a existencia.
Mal conseguias falar, mas sorrias a cada vez que olhavas para mim.
Explicaste-me o teu sofrimento que nunca irei entender por ser tanto... Mas via nos teus olhos o desespero e por outro lado a força de vontade de vencer algo, que nao podias controlar.
Sentamo-nos a volta da mesa na sala, sentaste-te no teu cadeirao. De vez em quando levantavas-te para aliviar a pressao, as dores... Foram muitas as vezes em que referiste a morfina. Em que explicaste o alivio que essa te dava mas o desgaste que te causou. Era uma luta contra ti mesmo.
Senti-me impotente. Achei-te tao fragil que nem sabia se te podia pegar na mao.
Chorei. Consolei-me. Mas continuei a chorar por dentro, em silencio.
Nao me podia mostrar fraca, porque tu sabias a menina forte que eu era, desde a minha infancia....
Falamos de muita coisa, tentamo-nos abstrair... Falamos de muita coisa que jamais teriamos pronunciado, como se soubessemos que seria essa a ultima vez que nos veriamos.
Falamos e falamos. '' Sempre foste uma menina forte, inteligente e generosa... a tua vida nao foi facil e nao pudeste escolher. Sei de tudo pelo que passaste, eras apenas uma criança e nao tiveste tudo o que realmente merecias. Espero que encontres a felicidade tao desejada e que tenhas sempre o melhor ''....
Chorei mais uma vez. Nao consegui ser mais forte. Para alem da dor que era ver-te assim, fizeste-me lembrar das minhas dores que ja vinham de ha muito tempo. Mas eras tu, eras TU que estavas a falar comigo e nao me importava. A consciencia que tinhas de mim, era um consentimento, era uma validaçao daquilo pelo que ja tinha passado e foi a melhor forma de me teres dado força.
Sempre falaste de mim como uma filha. Mais filha que os do teu sangue.
A cada minuto que passava, mais eu queria poder ter uma soluçao nas minhas maos para te poder ajudar ou aliviar. A tua dor era dificil de sentir mas se pudesse teria carregado o fardo do teu sofrimento para te ver mais descansado,sem lutar.
Sentia-te nervoso, mas tentavas fazer passar um sentimento de calma... o tumor persistia, a operaçao tinha sido em vao.
Passadas umas horas na presença um do outro, de tristeza mas tambem de muitos sorrisos e muitas lembranças... Estava na hora de me ir embora.
Penosamente me despedi... com a certa incerteza de te voltar a ver um dia, melhor... tentava acreditar mas, estava-me a enganar a mim mesma. Mas tinha fé.
Fui a minha vida. De vez em quando ligava para ti para saber como estavas, ou tu para mim para me dizer que estava tudo bem. Estavas a melhor...
Viveste quase um ano em menor sofrimento... Estava feliz, para mim, tinhas vencido o cancro pela segunda vez.
....
Março 2009, estava em portugal, no estoril, no carro a caminho de uma festa. Eram 21h da noite e a minha mae liga-me a chorar...'' O tio está a morrer, o padre está la em casa, a rezar... A tia esta la com ele ''
A partir dai, os dias foram de angustia... Tu ja nao comias ha semanas, ja nao te mexias e ja nao sabias falar... Tio, chorei e chorei e chorei de tristeza como se isso pudesse resolver... Toda a gente pensou que era aquel o dia. E eu nao sabia o que fazer. Fiquei afonica... nao tinha palavras.
Quase que esperavamos pela noticia da tua morte... Mas umas semanas passaram e parecias estar estavel... mas sem comer.
Em março, eram 5h30 da manha... A mae ligou e ligou e ligou e ligou mas aquela hora estava a dormir...
Acordo com uma mensagem '' Raquel , o tio morreu ''. Escrito em maiusculas, como um grito de dor.
Liguei a mae em choro, a perguntar-lhe o porque!!! Queria uma resposta... Queria saber porque que te tinhas ido embora... ... Queria saber porque é que as unicas pessoas que me comprendiam tinham de deixar este mundo....
Ela consolou-me tao triste quanto eu. Mas eu nao era consolavel.... Deitada na cama, chorei a manha toda. Por entre palavras de reconforto da pessoa que amava que me embrulhou nos braços ele e dizia-me ''chora, faz bem, é normal, é a dor... '' E naquel momento senti-me tao pequena !
Passado um dia, fui ao Porto para te ver pela ultima vez e dizer-te adeus.
Estava serena... A familia estava toda la, os que gostavas e os que nao gostavas. Os que nunca estiveram ao teu lado e que condenei por estarem ali, porque nao mereciam ver-te naquela que seria a tua ultima presença no meio dos teus mais queridos ...
Uma enorme fila negra se extendia a porta do velorio, era um corredor, onde passavamos pela familia para fazer sentir os pesames, estavam la os tios e os primos... e os teus filhos, que te deixaram !
Todos me abriram caminho para que te visse. Todos sabiam da importancia que tinha para ti e tu para mim...
Ainda nao estavas ao alcance do meu olhar, mas ouvia a tia Dorinda a chorar desesperada. Passei pelo primo Bruno que me pos a mao no ombro e me pedisse que fosse forte ...
Cheguei ao teu lado. E nao consegui evitar. Sufoquei no meu repentino choro. Nao me contive e disseram-me que nao olhasse mais para ti... E nao conseguia evitar, estavas tao bonito... Estavas deitado, sereno em paz... nao estavas a sofrer como te tinha visto da ultima vez e por isso estavas lindo....
De olhos fechados tive a sensaçao que me dizias que estavas melhor agora. E nao fui egoista. Entendi que a tua dor era muita e que te ires embora era para ti o caminho certo...
Parecia que estavas a dormir e que poderias acordar a qualquer momento... mas se te pudesse acordar nao o faria. Estavas tao em paz.
Chorei, chorei, chorei, nos braços das pessoas que me agarraram.... Foi tao dificil...
Foi muito dificil....
Vi-te descer na terra de onde surgiste... Naquele ambiente de dor e repleto de gente triste... senti-me só!
Só contigo...
Estejas tu onde estiveres, sei que estas melhor que aqui.... a vida é feita para os fortes. E tu foste forte muitas vezes perante as provas que te foram impostas. Quebraste. O corpo da tua alma sofreu a doença que te fez deixar a vida.
Apagaste da pior maneira. Morreste a fome. A doença ja nao te deixava comer. Ironicamente, nao foi o cancro que te atormentava ha tantos anos que te levou ... Foi a fome, a angustia, a dor...
Estejas tu onde estiveres, por eu hoje estar a sentir o que sinto e me lembrar de ti, é porque estás perto ... e lançaste-me uma seta chamada «memorias e recordaçoes». E por isso me lembrei de ti... nao foi em vao e hei de entender a mensagem....
Tio, tenho muitas saudades e quem me dera poder ouvir-te sem ser na minha cabeça....
Sinto-te comigo hoje. Muito perto.
Quero que saibas que nunca morrerás enquanto eu continuarei viva. Enquanto a minha memoria for boa e enquanto a minha saude nao falha...
Beijo terno da tua sobrinha que te adora, nao te esquece. Obrigada pela palavras que me disseste naquel dia, obrigada pela força, obrigada por seres mais forte que eu. Es um exemplo.
Por entre lagrimas e olhos embaciados encontrei por este meio uma forma de alivio, é uma carta que te escrevo... E uma carta que leste a medida que fui escrevendo por morares no meu pensamento.